“A única coisa capaz de formar um ser humano é a consciência crítica, a capacidade de pensar seu ambiente e suas relações.
Alfabetizar é isso, não é aprender a escrever o próprio nome num papel.”

Paulo Freire

domingo, 15 de novembro de 2009

Jornal Bolando Aula Abril de 2009
Diversidade RELAÇÕES RACIAIS E ÉTNICAS NO BRASIL E
A INSERÇÃO DA LEI 10.639/03 NO CURRÍCULO
Mary Francisca do Careno
Introdução
Para tratar de um tema tão instigante como diversidade étnica e racial, é antes de tudo ,saber que é preciso abrir o debate sobre a democratização do acesso à educação, do acesso ao conhecimento. Para que o conhecimento sobre os estudos afro-brasileiros avancem, é preciso buscar o saber histórico; é necessário encontrar respostas para as questões do presente, conhecendo fatos passados e se projetar, criar perspectivas coerentes para o futuro. Entendo que estamos iniciando uma discussão que precisa ser ampliada.
Dessa forma, ainda há muito o que discutir nesse campo. Vamos, inicialmente, discutir o sentido do termo democracia.
A ONU, por exemplo, considera que existe democracia num país, quando todos os povos estiverem representados no poder, na mesma porcentagem em que estão representados na população. Ou seja, o Brasil só será uma democracia quando pelo menos 44% das autoridades eleitas, nos municípios, nos Estados e na esfera federal for representados por mulheres e homens negros.
Políticas de ações afirmativas
Como fazer com que isso se efetive? Com políticas de ações afirmativas1 em todos os setores da sociedade. Os estudos afro-brasileiros vão nessa direção.
Sabe-se que formas de ações afirmativas, além dos EUA, têm sido utilizadas, com sucesso, em sociedades das mais diversas partes do mundo como Índia, Cuba, URSS, Israel, Austrália, Nigéria, Malásia (onde foram apontadas como fator importante para o impulso econômico acontecido neste país ao longo das décadas de 1980 e 1990); e recentemente na África do Sul, ao longo e após o mandato de Nelson Mandela.
Outro significado concreto para o verbete “democracia” também pode ser entendido quando se conseguir incluir, segundo o educador Mario Sergio Cortella, “nas elites científicas, sociais e políticas pessoas que possam representar a visão do excluído”.
Nós temos alguns representantes nesses setores, mas às vezes faltam bases para se efetivar a representação. E ele dá dois exemplos.
O primeiro: quando Heraldo Pereira, da Globo, foi apresentar o Jornal Nacional, não havia ponto eletrônico (aparelho que se usa no ouvido para comunicação entre a produção e o apresentador) para a pele dele. Só havia para pele “normal”, ou seja, a branca. Ao apresentar o segundo exemplo, Cortella se indaga que há quanto tempo se ouve: use o curativo tal porque ele é da cor-da-pele. Cor da pele de quem? Eu também me indago quando nós, mulheres negras, vamos comprar cremes ou meias “da cor da pele”. Cor da pele de quem?
Essas situações inusitadas, mas corriqueiramente ocorridas configuram espanto e desalento. Espanto pelo ineditismo de que muitos nunca tinham se apercebido delas e desalento em constatar que as artimanhas da teia de racismo e de discriminação estão em todas as partes, nos pequenos eventos do cotidiano.
Elas advêm da idéia de invisibilidade na qual muitos querem envolver o negro. Se ele não existe, para que fabricar meias, cremes, pontos eletrônicos da cor da pele dele?
O papel da escola frente à discriminação e ao racismo
Outro exemplo: A estrutura escolar, o material didático e os professores, em geral, não estão adequados à multiculturalidade2. A criança negra brasileira olha em volta e não se reconhece nos livros, nos heróis televisivos ou nas revistas em quadrinhos. Exemplo: livro de Ciências, quinta série: há o desenho do corpo humano mostrando um sujeito loiro, de olhos azuis, um sueco. Não há identidade!
Isso provoca a depauperação da auto-estima e da capacidade de produção.
Outros dados também deixam transparecer a desigualdade social:
Constantemente vemos cenas que nos fazem perguntar: Em que democracia estamos?
Vamos insistir em considerar o fator escolaridade. Segundo uma pesquisa feita pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o tempo médio de estudo de um jovem branco com 25 anos é de 8,4 anos, enquanto o negro, na mesma idade, passou apenas 6anos na escola.
O abismo fica evidente quando se observa o currículo escolar. O professor Marcelo Paixão, do Instituto de Economia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), admitiu em 28/07/2006 em entrevista concedida à Folha On Line, jornal eletrônico da Folha de S. Paulo, que, à medida que os negros avançam nas séries, sobe a distorção da idade adequada. Enquanto 53% das crianças brancas de dez anos estão na série ideal para a idade, só 35% das crianças negras se encaixam no perfil.
A distorção sobe aos 17 anos - 32% dos jovens brancos estão na série adequada, contra 13% dos adolescentes negros. A professora Regina Vinhaes, da Faculdade de Educação da UnB (Universidade de Brasília), nessa mesma entrevista diz que o resultado do Censo Escolar 2005, feito pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) vai ao encontro de um tema cada vez mais debatido: qualidade do ensino público. Seus resultados mostram que a escola pública tem cumprido o caráter de permitir acesso a todos, independentemente de cor, religião. Todavia, a não permanência do negro nas universidades, por exemplo, demonstra que a escola deveria ser, antes de tudo, um local de construção de cidadania e comprometida em contribuir com a construção de uma educação multirracial e popular.
Mas já começamos a sair dessa nebulosidade, já começamos a incomodar e a fazer a sociedade se mexer, discutir, indignar-se, sair do estado de comodismo e de letargia, do tudo em seu lugar pré-determinado pelos que detêm o poder.
Percebemos isso com os debates calorosos a respeito da Lei de cotas e do Estatuto da Igualdade Racial.
Com isso, a única coisa necessária para a perpetuação da discriminação racial é que as pessoas (brancas e negras) se omitam diante dessa grave situação.
A nossa omissão é nossa forma de aprovação! Nada fazer é cooperar com o racismo existente no Brasil! À medida que os grupos sociais reivindicam, os estudiosos negros aprofundam os estudos e os debates.
O que dizer da omissão das escolas e universidades com relação ao currículo de cada curso?3 Que expectativas as/os educadoras/es têm em relação à criança e à/ao adolescente negra/o? Baixas expectativas em relação às/aos estudantes negras/os fazem com que as/os educadoras/es correspondam à situação de irresponsabilidade com a educação de todos. Outras questões: como os gestores e educadores percebem e trabalham com as questões raciais e os preconceitos no seu cotidiano escolar?
Quais as dificuldades que encontram no que diz respeito às questões raciais e ao preconceito com as crianças, jovens e adultos? A formação recebida até então pelos educadores tem contribuído para o seu entendimento de como lidar com os preconceitos e as questões raciais no seu cotidiano? Logo, outra ação afirmativa é a promoção de cursos de formação de professores voltados para a questão étnica.
Rebeldia e resistência negras: ações afirmativas
Começamos a incomodar, a sair do estado de letargia. Aí vão alguns exemplos.
Os estudos afro-brasileiros vão na direção da constatação da existência hoje de mais de 800 remanescentes de quilombos no Brasil, a provar que o negro nunca foi uma pessoa passiva e nem aceitou sem lutas a sua condição de escravo.
Essa imagem de negro escravo e passivo foi uma das formas de denegrir a imagem dele e de perpetuar o status quo.
Desde quando os primeiros navios negreiros aportaram no Brasil, ocorreram a rebeldia e a resistência contra a escravidão, expressando-se tanto individual como coletivamente. A resistência individual manifestava-se por meio de formas extremas como suicídios, abortos (as mães escravas não queriam ver os filhos tendo o mesmo tipo de vida que elas), assassinatos de feitores e de senhores de escravos. A resistência coletiva também se expressou através de fugas em grupo, de incêndios nos canaviais, da capoeira (que não é uma dança e, sim, uma luta), a religião, os quilombos.
Hoje continuamos resistindo. Embora os governos não implementem, por si sós, nenhuma ação de integração do negro à sociedade, os integrantes do movimento negro têm feito um trabalho gigantesco na medida em que propõem ações ininterruptas, desde meados do século XIX, aceleradas nas décadas de 80 e 90, para mostrar à sociedade a importância da participação negra na formação do povo brasileiro:
I) curso pré-vestibular para negros e carentes;
II) luta pelas cotas:
A implantação da política de cotas no Brasil tem sido alvo de intenso debate. Há quem acredite que nosso país seja uma democracia racial, e portanto considere tal medida desnecessária. No entanto, isso não passa de mito, visto que a Lei Áurea, que completou este an 120 anos, não promoveu a integração social do negro. Os recém-libertos continuaram marginalizados, sem terra para produzir, sem garantias sociais ou qualificação profissional. A maioria se deslocou para as cidades, onde os aguardavam o desemprego e uma vida marginal. O que deveria ser um desajuste transitório transformou-se em estrutural, reforçando o preconceito.
ONTEM, A SENZALA ERA O LUGAR DO
NEGRO; HOJE, A PERIFERIA, A FAVELA.

As cotas servem para reparar, em parte, as injustiças históricas. A discussão sobre as cotas não pode ser feita isoladamente, como temos visto em diversas esferas da sociedade. Essa é uma estratégia daqueles que são contra ou daqueles que não querem discutir sobre o assunto. As cotas étnicas têm de ser discutidas no contexto das políticas de ação afirmativa, as quais estão inseridas na luta em prol do combate às desigualdades sociais e raciais no Brasil.
Cotas, no Brasil, não se restringem ao movimento negro. Elas também fazem parte da luta de outros grupos do movimento social. No cenário político nacional, elas se dão em conjunto com outras políticas de reconhecimento, como são exemplos as cotas para os portadores de necessidades especiais, para os indígenas e para mulheres nos partidos políticos e nas representações públicas.
III) a Lei 10.639/03 que insere no currículo escolar a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica, estabelecendo que o Ensino deve levar em conta as matrizes indígena, africana e européia que contribuíram fundamentalmente para a formação do povo brasileiro.
A demanda por maiores direitos que a comunidade afro-brasileira, há décadas,
vem exigindo cristaliza-se com essa lei, pois reconhecer exige a valorização e
respeito às pessoas negras, à sua descendência africana, à sua cultura, à sua história.
Vale ressaltar, todavia, que apenas a lei não basta para ocorrer, de fato, uma
mudança curricular em nossas escolas, na formação e na prática dos profissionais
da educação. Parafraseando Martim Luther King, “ A lei não faz com que eles
nos amem, mas impede que eles nos linchem.” No caso brasileiro, a lei não faz com que nos amem, mas corporifica o grito por uma dimensão reparatória no campo da legislação.
Ou ainda: A lei não faz com que eles nos amem, mas força-os a discutir o tema racial na sala de aula, a ler sobre o tema e a conhecer melhor a contribuição do negro para a formação da cultura brasileira.
IV) Outro ato de resistência e de luta às iniqüidades atuais foi a criação de NEABs - Núcleos de Estudos Afro- Brasileiros.
Os NEABs, criados por professores, pesquisadores, estudantes e funcionários de entidades do ensino superior, são vinculados ao MEC, por meio do UNIAFRO - Programa de Ações Afirmativas para a População Negra nas Instituições Públicas de Educação Superior, que visa a apoiar e a incentivar o fortalecimento e a institucionalização das atividades dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros - NEABs ou grupos correlatos das Instituições de Educação Superior, contribuindo para a implementação de políticas de ação afirmativa voltadas para a população negra.
Ao todo, são 56 grupos, com centros ou núcleos de estudos afro-brasileiros, entre Universidades estaduais, federais e privadas.
Assim, de acordo com o jurista Joaquim Barbosa Gomes (2001) - o primeiro negro a ser indicado para ocupar uma vaga de ministro no Supremo Tribunal Federal -, por ação afirmativa devemos entender um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, que visam ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional. (Nilma Lino Gomes)“Uma política de ação afirmativa tem como objetivo corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada
no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de
acesso a bens fundamentais como educação e emprego” (Gomes, 2001, p. 40 e 41).

Estamos, então, lutando pelo reconhecimento da diferença, uma luta pelameqüidade, pela implementação de políticas universais, sim, mas que caminhem lado a lado com políticas de ação afirmativa para a população negra. As políticas públicas deveriam sempre trabalhar nesses dois registros: garantir o acesso universal à educação, saúde etc. e também respeitar as diferenças. Quem administra políticas públicas no Brasil precisa trabalhar com políticas que caminhem nessas duas perspectivas. Se não fizermos isso, estaremos ferindo princípios democráticos básicos. (O movimento negro tem trabalhado com esses dois registros).
A política de ação afirmativa, além de ser uma reivindicação do movimento negro, faz parte de compromisso assumido internacionalmente pelo Brasil.
Compromisso que está explicitado no estatuto da Igualdade Racial, hoje em
discussão no Congresso Nacional, e na criação da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, criada pelo presidente Lula no dia 21 de março de 2003.
Conclusão
Tomo emprestadas as palavras de Santomé (1998, p.150) “ uma política educacional antidiscriminatória não pode reduzir-se a uma série de lições ou unidades didáticas isoladasdestinadas ao estudo desta problemática. Não podemos dedicar apenas um dia por ano à luta contra os preconceitos raciais e a marginalização. Um currículo democrático e respeitador de todas as culturas é aquele no qual estão presentes estas problemáticas durante todo o curso escolar, todos os dias, em todas as tarefas acadêmicas e em todos os recurso didáticos.”
Portanto, aquilo quer vem sendo denominado de Temas Transversais,segundo Passos (2002, p.38), “precisa se constituir em princípios curriculares, haja vista
que trata das dimensões que nos constituem humanos como a ética, a pluralidade
cultural e a sexualidade. São conhecimentos constituintes de todos os modos
de vida de uma sociedade.”

Gostaria de fazer, com este trabalho, uma homenagem ao meu povo e a todos e todas que se preocupam com a questão étnica no Brasil, que dentro de suas áreas de saber contribuem de uma forma ou de outra com a inclusão social e racial, para tornar a nossa sociedade e a nossa escola mais críticas, mais solidárias e mais leitora.
Que sejamos todos e todas a concretização do sonho de liberdade de Zumbi dos Palmares!
Referências bibliográficas
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CARENO, M. F. do. 1991. A Linguagem Rural do Vale do Ribeira: a voz e a vez das comunidades negras. Vol.1, Assis/SP. Tese de Doutoramento, apresentada
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___________ 1995. Nhunguara: Uma Comunidade Rural do Vale do Ribeira.
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___________ & SILVA, Maria Carmo B. G.1995. Representações Coletivas de
Sobrevivências afro-culturais. Trabalho apresentado durante o XVIII Simpósio Nacional de História.Universidade Federal de Pernambuco. ANPUH. ( Associação Nacional de História) Recife /PE 23 - 28 julho. Folha de São Paulo, 04/02/2002 - São Paulo SP. Desigualdade entre negros e brancos se mantém no Brasil.
GOMES, Nilma Lino. “Educação cidadã, etnia e raça”. In: AZEVEDO, J.C.;
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Cidadã. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS/Secretaria Municipal de Educação,
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MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: Identidade
nacional versus identidade negra/ Kabengele Munanga. – Petrópolis, RJ: Vozes,
1999.

Postado por : Marília Pimentel